sábado, 11 de junho de 2011

Fetiche pelo método - uma reflexão


Os métodos de pesquisa tornaram-se, para alguns pesquisadores, uma espécie de “fetiche”. Não é incomum bancas de mestrado e doutorado, ao darem seus pareceres, pesarem em demasia a mão na parte metodológica de dissertações e teses. Com isto, inevitavelmente dão menor importância aos objetos de estudo, às análises e às reflexões apresentadas. Há, inclusive, manuais de metodologias e certas “bíblias” metodológicas que têm suas leituras e citações cobradas pelos que desequilibram seu julgamento nestas bancas. Quando isto acontece, a escolha do método toma lugar principal nas discussões que, na maioria dos casos, tornam-se políticas. Os discursos que defendem este ou aquele método trazem um conteúdo não só técnico, mas também de filiações. O que é dito é que se questiona a adequação do método ao objeto, mas o que se defende mesmo nestas discussões metodológicas é a preservação de posições de poder. Bourdieu já denunciava este tipo de comportamento em seus trabalhos. O fetiche pelo método nas discussões busca a preservação de um lugar dominante em um determinado campo e não a construção passa a passo de um raciocínio pautado na adequação do método aos objetivos e objetos de estudo.
Assim, trabalhos que trazem questões e enfoques um tanto inovadores tendem a ser taxados de menos científicos se não se encaixarem nos métodos politicamente consagrados pelos dominantes do campo em questão. Alguns são refeitos e adaptados ao modelo vigente e aceito por quem domina. Chega-se até a distribuir regras por escrito que incluem quais métodos de pesquisas são aceitos como legítimos e quais não. Caso um trabalho não aplique exatamente o método escolhido no formato do manual, pode ser taxado de não-científico. Critérios de cientificidade criados a partir de conveniências políticas e não de pesquisa. Ao mesmo tempo, há uma preocupante incoerência quando se cobra de estudantes e pesquisadores estratégias e enfoques inovadores. Não é difícil encontrarmos nas diretrizes de revistas acadêmicas, por exemplo, exigências por trabalhos que trazem um enfoque inovador e diferenciado em relação ao que já foi pesquisado sobre um determinado objeto. Como é possível termos algo novo e consagrado a partir de diretrizes metodológicas pré-estabelecidas? Este é um nó que um dia precisamos desatar. Se buscamos novidades, precisamos enfrentar o novo sem medo, sem receio da perda dos lugares dominantes. O novo sempre irá gerar uma tensão em quem está no poder. O trade off é necessário. O lugar de dominante precisa ser ameaçado pela inovação, para não termos uma produção do conhecimento que roda em torno de si mesma. Produzimos pesquisas inovadoras a partir de métodos já consagrados que engessam estas pesquisas trazendo-as ao patamar do que já é conhecido. Ou seja, não inovador. Não defendo a libertinagem metodológica. Mas, é preciso que os dominantes dos campos do conhecimento se movimentem no sentido de permitir que sopros de juventude voltem a perpassar pelo mundo da pesquisa acadêmica e permita que as inovações realmente façam seu papel: inovar. Séculos e séculos de discussão se passaram e a ideia de ciência parece ainda rodar em falso muito pelo peso político que se dá na escolha dos métodos. Temas inovadores pesquisados através de métodos conhecidos é um casamento arranjado, um matrimônio por conveniência. Entre quatro paredes as diferenças começam a aparecer e uma relação sem intimidade afetiva tende a não ter futuro. É comum nestes enlaces adaptações de percursos anteriores aos novos locus e corpus que se apresentam no contemporâneo. É o caso da internet.
Ao pesquisarmos objetos de estudo pertencentes à internet, os métodos mais tradicionais dificilmente nos ajudariam a analisar e refletir com a profundidade que estes demandam. O início dos estudos da internet contou com a busca de aplicações de métodos tradicionais de pesquisa ao mundo online e muitos ainda insistem neste caminho. Categorizações, estudos quantitativos e qualitativos são, insistentemente, aplicados ao mundo online sem qualquer reformulação. Imaginou-se que o mundo online seria uma verdadeira metáfora da vida offline. O tempo se encarregou de mostrar que o ciberespaço não é nem uma simulação digital da vida offline nem uma segunda vida, como chegaram a pensar os inventores do Second Life. Este jogo, que chegou a contar com investimentos milionários por parte de empresas, não correspondeu às expectativas por, simplesmente, oferecer ao internauta uma tentativa de simular uma vida offline. Os defensores do Second Life diziam que lá você poderia experimentar o que não poderia em sua vida normal, lá você seria o que você não poderia ser fora do ciberespaço. Entretanto, usuários do mundo todo experimentaram e não gostaram da qualidade desta experiência. A vida offline já basta para os internautas. Estes não procuram uma simulação de uma vida que já vivem no dia-a-dia. Trabalhar para ganhar dinheiro para poder comprar bens já é algo bastante duro na vida de todos nós e basta. Para que reproduzir conscientemente o mesmo funcionamento para dentro de um jogo. Há uma busca por diferentes experiências, por algo novo em relação à dura vida chamada de “real” por alguns. Algo mais novo, na linha do que as redes sociais como Orkut e Facebook oferecem.
Quanto mais nos aprofundamos no mundo das redes digitais, mais percebemos que as fronteiras entre o online e o offline estão sendo dissolvidas. A ciborguização do nosso dia-a-dia expressa a mistura entre a tecnologia e a vida cotidiana. Os devices tecnológicos estão, cada vez mais, deixando de ser apenas acessórios para tornarem-se parte integrante de nosso cotidiano. Alguns estudos que buscam entender a cibercultura tornam-se limitados quando se restringem às fronteiras da internet. Superficialidade e visões apaixonadas são ameaças para uma pesquisa que se restringe a estudar um objeto apenas em sua manifestação online. Redes sociais, por exemplo, são manifestações online e, sem dúvida, devem ser pesquisadas a partir de suas páginas na internet. Entretanto, há o risco de uma generalização e restrição nas reflexões quando desconsideramos determinados aspectos do perfil dos usuários de uma rede social. Entender em uma pesquisa os usuários de um site de relacionamentos como o Facebook, por exemplo, como um só grupo que pode ser dividido em uma ou duas categorias a partir, exclusivamente, de seu comportamento online é a porta de entrada para a superficialidade e para o imediatismo nas reflexões. Se pensarmos rapidamente sobre o Facebook, podemos concluir que não existe apenas um Facebook comum para todos os usuários. O significado deste varia de indivíduo para indivíduo, de lugar para lugar. As apropriações deste site garantem uma importante diferença simbólica, no mínimo, no patamar dos grupos que o utilizam. Qualquer definição que generalize as razões de se estar no Facebook pode ser um erro na medida em que não falamos por todos. O erro recorrente em pesquisas na internet se dá a partir da tentativa de generalização das reflexões. Pesquisas quantitativas não nos dão mais do que quantidades. Há estudos que dizem concluir, a partir de observações restritas ao mundo online de alguns perfis de usuários desta rede social, como se dá o comportamento dos usuários do Facebook e quais as principais motivações de se estar lá. Não é possível generalizarmos tais conclusões. O Facebook é único para cada um de seus usuários. Isto é o que nos ensina a Antropologia. Ao invés de buscarmos entender um objeto como o FB considerando que todos seus usuários são iguais, só conseguiremos compreender mais profundamente os fenômenos que o envolve constatando que os que o utilizam o fazem por razões diferentes. Por exemplo, dizer que no Facebook haja três categorias de comportamentos online: hanging out, messing around e geeking out, como querem que acreditemos os autores de um livro que traz como título estas três categorias é um equívoco. Este livro apresenta uma pesquisa realizada na superfície porque busca amplitude em não profundidade em seu caminho. O mundo do marketing nos trouxe um vício arriscado, imaginar que o consumidor de coca-cola, por exemplo, seja o mesmo indivíduo no mundo todo e que podemos ser todos iguais quando o assunto é este refrigerante. Assim trabalha o livro Hanging Out, Messing Around and Geeking Out. Para seus autores, os jovens que utilizam a internet se dividem em três grupos e ponto final. Como se realmente a hipótese da Aldeia Global de McLuhan tivesse finalmente chegado ao seu ápice. Para o senso comum, globalização seria isso: somos todos cada vez mais iguais no mundo todo. Entretanto, as diferenças culturais, geográficas, socioeconômicas e políticas garantem a distância que estamos desta normalização da vida, quando todos pensariam igualmente, comprariam as mesmas coisas, teriam os mesmos desejos e usariam a internet pelas mesmas razões.
O mundo da publicidade também insiste na ideia de que somos todos iguais diante de um determinado desejo de consumo, como se isto fosse possível. Todos que tomam coca-cola ou usam uma marca de roupa são iguais, pois compram a mesma marca. A antropologia mostra o contrário. Nenhum consumidor de coca-cola ou de determinada marca de roupa consome pelo mesmo motivo, através das mesmas motivações. Cada momento de consumo é único e cada razão tem sua peculiaridade. Pesquisar o Facebook apenas através de suas páginas online nos leva a generalizações que tornam nossos estudos superficiais, restritos e imediatistas como é o caso do livro que comentei. Pesquisadores que estão focados em uma compressão mais aprofundada da cibercultura precisam se esquivar dos métodos já consagrados, apesar de exigidos pelos dominantes, e escapar da tentação do imediatismo e comodismo da restrição do campo às fronteiras da internet. Há publicações, além do livro que citei, que seguem a linha da superficialidade ao categorizar usuários da internet entendendo seus comportamentos, atitudes e desejos como genéricos. O resultado é um ciclo de apontamentos e trabalhos que não fazem mais do que dizer sempre a mesma coisa, idealizando a internet como um ambiente democrático que propicia liberdade criativa aos jovens e enxergando os mais jovens como nativos digitais e os mais velhos como seres que tiveram que aprender o uso da tecnologia à força. A vida acontece além destas fronteiras fechadas e deste determinismo tecnológico que tornam parciais os estudos da cibercultura. Precisamos ir além para realmente discutirmos o que a tecnologia atual tem feito conosco. Não será com visões amplas e, portanto, superficiais que conseguiremos entender o consumo que a tecnologia tem feito de nós e não o contrário. Saber que o iPad 2 tornou-se objeto de desejo e distinção entre indivíduos, nós já sabemos. Agora, saber o porquê este aparelho que ainda precisa mostrar sua função consome de nós muito mais do que apenas o nosso dinheiro.

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