quarta-feira, 23 de março de 2011

Pesquisa e regulamentação no consumo

Como comentei anteriormente, fui muito bem recebido aqui em Londres pelo prof. Daniel Miller. Prontamente, disponibilizou os principais recursos da universidade e do departamento de antropologia para meus estudos: biblioteca, participação em seminários, aulas como ouvinte, acesso ao banco de dados de todas as áreas da escola, integração com o grupo de PHDs que orienta e, principalmente, pronta disponibilidade para discutir meu trabalho de pesquisa com ele. As discussões com o professor e suas indicações de bibliografia são os dois pontos que mais me apóiam. Com a excelente base que o mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM e o doutorado em Comunicação e Semiótica da PUC me deram, consigo me apoiar na forma antropológica de olhar meu objeto de estudo que o prof. Miller tem me proposto.
Seguindo com minhas indagações que tenho postado aqui neste blog, percebo que há um risco de olharmos de forma um tanto simplista sobre a antropologia. Isto tanto para quem vive no mundo do marketing como no mundo da comunicação. Durante minha carreira profissional e em meus estudos no mestrado e doutorado, deparei-me com várias leituras e exemplos sobre a tentativa de utilização da etnografia no mundo da comunicação e também do marketing. Poucas trazem realmente um olhar antropológico sobre o que se pesquisa. Confunde-se simples observação com participação e vivência com pesquisa qualitativa que busca alguma profundidade.
Entendo que o mercado precise encontrar formas mais rápidas, simples e baratas de se obter informações do campo. Uma consultoria de marketing, por exemplo, que busca soluções e "receitas de bolo" para o sucesso de seu cliente tende a ir a campo para buscar informações que tragam sucesso financeiro o mais rápido com o menor investimento possível. Ir a campo e trazer, rapidamente, um mapa do tesouro é o desafio de muitas empresas de pesquisa de mercado. Entretanto, algumas horas com um consumidor no supermercado e/ou em sua casa não chega a ser um processo com alguma aproximação etnográfica. Um olhar antropológico sobre um objeto requer dois parâmetros que este tipo de pesquisa de mercado não dispõe: tempo e liberdade de objetivos.
Maior tempo de pesquisa leva a um maior envolvimento com informantes e seu ambiente. A profundidade é importante em um processo etnográfico e é preciso um período longo de vivência ao lado do que se pesquisa para se chegar a resultados consistentes. Não só observar, anotar, gravar, mas vivenciar os processos de vida dos pesquisados. Sentir o que sente. É preciso respirar por um tempo o mesmo ar que respira o grupo que se pesquisa. Elizabeth Chin em seu livro Purchasing Power descreve sua vivência em um gueto norte-americano, onde pesquisou por dois anos o consumo de meninas negras de dez anos de idade. Em sua descrição, a autora analisa seus dados de campo ao mesmo em que traz profundas reflexões sobre a relação entre temas complexos: consumo, raça e desigualdade social. As colocações de Chin neste livro nos dão ideia do quanto o tempo é aliado da profundidade em um trabalho etnográfico. Só foi possível trazer assertividade às conclusões de Chin sobre consumo infantil depois vivenciar por um longo período o mundo das meninas negras do gueto norte-americano onde esteve presente por dois anos.
Esta autora apresentou no início de seus estudos objetivos livres de premissas conceituais ou mercadológicas. Foi à campo sem diretrizes já traçadas sobre o que se iria concluir. Seu objetivo era entender o papel do consumo na vida daquele grupo de indivíduos. Como relata Chin, o consumo é indicador de diversas práticas na vida das meninas que pesquisou e, assim, central no entendimento de suas relações.
Não é fácil ir à campo mais leve, deixando para trás todas nossas opiniões formatadas ao longo do tempo e os discursos prontos que trazemos ao longo de nosso percurso de vida. Precisamos ir à campo por mais tempo e mais livres do que já "sabemos" em relação ao que iremos pesquisar. Elizabeth Chin produziu um dos poucos trabalhos que trazem alguma profundidade sobre o consumo infantil porque se propôs a trabalhar livremente por um longo período de tempo. As reflexões de Chin podem ser usadas por diferentes áreas e profissionais. Tanto o mercado como a academia podem desfrutar dos resultados deste livro. Para o mercado, traz entendimentos sobre consumo infantil para além dos números das pesquisas quantitativas e da estreita visão demanda-produção. Para a academia, é base para estudos mais atualizados sobre o consumo infantil que pretendem ir além da visão apocalíptica do marketing e da publicidade.
Outro importante exemplo sobre a visão antropológica do consumo vem da última aula do termo do mestrado em Antropologia Digital ministrada pelo professor Daniel Miller. O tema desta aula foi o consumo e as questões que envolvem a sustentabilidade. A primeira frase do professor em aula foi: "Salvar o planeta, como?"
O ponto de vista discutido é o do consumidor e não das empresas. Não há apenas um consumo responsável. Há diferentes formas de manifestação do que tem sido chamado de "sustentabilidade" no consumo. Talvez sustentabilidade seja ainda a expressão do momento quando queremos nos referir às preocupações com os processos de produção e consumo. Caso os tempos do termo sustentabilidade já tenham passado, peço desculpas aos mais ligados às expressões de moda do mercado. Produtos orgânicos, consumo verde, práticas responsáveis, consumo verde, embalagens recicladas, responsabilidade social, amigos do planeta etc. São muitos. Por outro lado, é difícil definir apenas um consumo responsável, já que, do ponto de vista do consumidor, os tipos apresentam-se de formas diferentes. O que leva, por exemplo, um consumidor a comprar um produto orgânico são diferentes razões que levam o mesmo a comprar um produto com embalagem reciclável ou um produto que apresenta práticas responsáveis em sua cadeia de produção. Um produto orgânico apresenta características que fazem bem à saúde de seu consumidor, traz menos gordura, não utiliza agrotóxicos na produção etc. Um consumidor de orgânicos compra pensando em si próprio. Por outro lado, comprar uma marca produzida por uma empresa que mostra não utilizar em sua cadeia mão-de-obra pouco ou nada remunerada é pensar no próximo não em si próprio como é no caso do produto orgânico. Estas motivações são, normalmente, confundidas sob um olhar mais imediatista do marketing das empresas. Outro ponto interessante está relacionado às motivações dos consumidores na hora da compra. Estes não se apresentam, majoritariamente, interessados em comprar esta ou aquela marca por apresentar práticas responsáveis. Suas prioridades não contemplam estes parâmetros. A compra responsável não faz sentido para a maioria dos consumidores, a questão política na hora da compra não se apresenta como determinante de escolha. Na hora do consumo, do uso e do descarte de embalagens aí sim os consumidores têm se mostrado abertos a determinadas práticas de sustentabilidade. Assim, concluímos que a compra responsável não convence os consumidores como faz o consumo responsável. Este sim faz sentido para os indivíduos que pretendem ajudar a "salvar" o planeta, o que pode significar também várias coisas diferentes.
Perguntado por alunos sobre as tentativas de regulamentação do consumo de marcas e produtos, o professor Miller foi assertivo em dizer que não acredita no resultado das regulamentações sobre o consumo. Prefere que se regulamente a produção. Regulamentar apenas a publicidade, as embalagens e a venda dos produtos não lhe parece tão eficaz quanto a regulamentação na produção. Compartilho deste ponto de vista de Miller, principalmente, em relação ao consumo infantil. No Brasil, há um desperdício de recursos e energia na tentativa de proibir a publicidade dirigida às crianças. Esta deve ser regulamentada, sem dúvida. Mas, é um tanto simplista ou oportunista acreditar que proibir a publicidade de alguns produtos vai fazer com que estes deixem de ser consumidos. A publicidade tem poder inferior ao creditado pelos fundamentalistas que buscam seu fim.
Cigarro mata quem fuma e não quem assiste ao comercial de TV. Não é eficaz manter a venda de algo que mata só para dormirmos tranquilos achando que salvamos vidas só porque proibimos sua publicidade em alguns meios de comunicação. Proibir sua publicidade é um indício de que se está tomando providências, mas literalmente não ataca o mal pela raiz.
Não é difícil concluirmos que o que funciona mesmo é uma regulamentação clara, simples e transparente na produção de produtos que trazem prejuízos às crianças, aos adultos e aos animais, enfim, ao planeta.

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