quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Saques e arrastões em Londres: um sintoma social

Posso dizer, com considerável grau de tranqüilidade, que uns dos pontos positivos destes meses que tenho morado em Londres é o distanciamento que vivo da nossa mídia jornalística. Soube da morte da cantora Amy Winehouse, por exemplo, através do Uol que tratou o tema de forma exaustiva. Logicamente que os veículos de comunicação ingleses noticiaram a morte da cantora, mas pararam por aí. Especial no horário nobre do domingo só no Fantástico mesmo. Confesso que é muito bom estar longe do “Show da Vida”. É um alívio estar a milhares de quilômetros desta opressão jornalística que vivemos atualmente no Brasil: qualquer fato torna-se notícia e qualquer notícia é transformada em produto para vender mais e mais e mais. A audiência é o que conta, os fatos, a informação são meios de se chegar lá. É só lembrarmos dos últimos acontecimentos trágicos narrados pelos nossos jornalistas como se fossem um reality show.
Não que os veículos ingleses não usem da mesma estratégia em busca de audiência. Sim, mas o que é diferente por aqui é que o exagero midiático é menor e a participação das “verdades” jornalísticas no cotidiano é menor. Entretanto, no sábado que passou foi diferente porque o que houve aqui em Londres foi bem distinto do que se vê no dia-a-dia. Liguei a TV no canal de notícias da BBC e lá estava uma imagem de um grande incêndio com uma paisagem ao lado já meio familiar para mim: casas, fachadas de lojas e ônibus tipicamente Londrinos. Pensei comigo: “isto está acontecendo por aqui, em algum bairro desta cidade”. As notícias contavam o acontecido em Tottenham, bairro ao norte de Londres. Um grupo de “manifestantes” estaria protestando a morte de um jovem na última quinta-feira, vítima de um tiroteio com a polícia. As notícias do sábado ainda davam uma ideia de manifestação, apesar da violência das cenas. Entretanto, os dias foram passando, ou melhor, as noites, horário preferido para a violência, e a manifestação tomou o formato de vandalismo com saques a lojas e a supermercados. Lojas de celulares, supermercados, grandes magazines, lojas de roupas e outros estabelecimentos estavam sendo invadidos por jovens que entravam quebrando toda e qualquer proteção para levar os produtos para casa.
Nestes dias, o clima na cidade foi de muita expectativa e medo. Não se sabia muito que fazer em uma situação como esta. Na dúvida, a recomendação era que ficássemos em casa, principalmente à noite. A atmosfera Londrina daquele momento me lembrou São Paulo de alguns anos quando o PCC ameaçou o caótico, mas conhecido por todos, dia-a-dia da cidade. Minha rua na Vila Mariana, pela primeira vez em quinze anos que moro lá, ficou horas e horas sem passar qualquer carro, dormindo em um inédito e inesquecível silêncio. Londres não estava assim, silenciosa, mas o clima era parecido: medo, receio, desconfiança, ansiedade. Os ingleses de nosso dia-a-dia se diziam envergonhados com o acontecido. Não sabiam explicar e criticavam levemente sua polícia, tida por eles, até então, como motivo de orgulho. Consideraram-na “soft” demais para um acontecimento como este. Compararam com a polícia norte-americana. Diziam que se fosse nos EUA, esta rebelião só teria durado um dia. Talvez assistam filmes demais para chegar a esta precipitada conclusão ou talvez tenham alguma razão no que falam. Só sei que a tão criticada polícia brasileira não receberia pedradas dos manifestantes de forma tão passiva e defensiva como fizeram os amedrontados policiais daqui. Mas, a verdade é que não estávamos nos EUA em no Brasil. Londres é lugar de desejo de dez a cada nove jovens brasileiros. Imaginei agora estes números. Mas, pouco importa sua precisão. Se são oito ou sete em cada dez, o que sabemos é que nossos jovens brasileiros, em sua maioria, idealizam esta cidade como sendo sinônimo de paraíso, objeto de desejo. Indubitavelmente ela tem algumas qualidades que justificam tal idealização. A questão é que a análise é sempre feita parcialmente: o Brasil só tem problemas como violência, desigualdade social. Por outro lado, países como a Inglaterra são superiores porque a violência não existe e a desigualdade social não passa de um problema do dito terceiro mundo. Engano nosso. O que aconteceu em Londres não foi uma manifestação pacífica de iguais socialmente. Vimos bandos de jovens saqueando violentamente o patrimônio de famílias que trabalharam anos e anos para ter um negócio. Muitas lojas pertencem a grandes redes que conseguem recuperar-se rapidamente do prejuízo, se chegarem a senti-lo, mas algumas são de pessoas que dificilmente recuperarão seu patrimônio. Perderam o que tinham. Londres não será a mesma depois desta semana que passou.
Não é fácil definir um perfil específico para os participantes dos saques. Inicialmente, imagionou-se que seria possível, mas as imagens dos tumultos revelaram diferentes formas e origens. São jovens ingleses, netos de uma geração que passou por guerras, fome, pestes. Filhos de pais que pouco controlam o que fazem os adolescentes que trouxeram ao mundo. É nítido nas ruas este fato. Adolescentes são vistos aos bandos totalmente desrespeitosos com o próximo, e agressivos com todos e com tudo. Cenas de agressividade e violência cotidiana são comuns nos vagões do metrô. Relatei outro dia uma cena destas, quando uma adolescente entrou empurrando a todos no vagão do metrô só para poder conseguir um lugar para sentar e se maquiar. A crise moral e de valores é nítida.
Como sempre, estes acontecimentos trazem muitas versões. A oficial diz que estes “saqueadores” são bandidos que se aproveitaram da situação para roubar e saquear lojas. A de alguns imigrantes, inicialmente acusados pelo fato pela TV, é que são adolescentes que recebem tudo do governo e nunca precisaram trabalhar, seriam bandidos produzidos pelo próprio sistema. Os ingleses que conheço dizem não entender o fato, principalmente por ter ocorrido aqui em Londres, lugar de muita diversidade cultural que estaria livre de manifestações como estas por ter desenvolvido relativa tolerância étnica. Entretanto, pelo que parece, não há nada de étnico e nem tampouco de vagabundo nesta manifestação. A velocidade e a amplitude das articulações invejariam qualquer estrategista de guerra. Em segundos os lugares eram saqueados e depredados por jovens com rostos tampados, sem qualquer chance para a simpática, mas lenta polícia inglesa reagir. Sem dúvida, em meio aos manifestantes poderia haver de tudo: bandidos, ingleses filhos de um sistema paternalista que “colhe o que plantou”, imigrantes etc. Mas, este fenômeno deve ser encarado com um termômetro social muito preciso. A questão é bem menos simples do que quer encarar a BBC e os jornais brasileiros que assustaram bastante nossos familiares e amigos.
Londres, como centro nervoso do mundo, mostra certo cansaço. A sociedade está cansada, talvez nosso planeta esteja cansado de tanta exploração. Invasões, destruições e saques à natureza são a marca de nossos tempos. Não é à toa que estes jovens ingleses usaram tal estratégia para se manifestar. Muitos entre nós orgulham-se de nossos tempos pelo seu desenvolvimento tecnológico, quando quase todos têm um aparelho celular e o objetivo é que aconteça o mesmo com as “tabletes eletrônicas”. Dizem estes: país desenvolvido é aquele em que todos têm acesso à tecnologia de ponta. Entendem, tecnologia de ponto como sendo celulares e tabletes, desconsiderando que em alguns lugares falta água encanada, comida na mesa e educação. A civilização está cansada desta empreitada moderna pelo desenvolvimento tecnológico atrás do sonho de um impossível mundo homogêneo e puro, sem desvios de norma. O que houve em Londres deve ser encarado como um sinal. O que assusta nestas manifestações de violência que aconteceram por aqui é que elas foram realizadas por jovens que articularam os atos via BlackBerry, objeto de desejo da juventude de hoje. Os atos eram contra lojas que vendiam produtos que são, para nós, mais do que algo a ser comprado, são símbolos de distinção social. Celular, computador, tênis, roupas, carros são objetos que possuímos também para nos distinguir socialmente, mostrar quem somos e quanto poder aquisitivo temos. Ter um iPad hoje, virou quase obrigação social. Mesmo ainda tendo dificuldades para explicar para que serve, qualquer adolescente sonha em usar seu iPad 2. Assim pode abrir seu perfil no Facebook e postar onde está naquele momento para seus amigos verem o quanto distinto socialmente é pelo lugar que freqüenta. Tudo isto em tempo real. Estamos nos esquecendo da base. Ensinamos aos nossos jovens que o que importa é o dinheiro porque este é viabilizador da distinção. Londres é o centro nervoso de um mundo capitalista que vive em uma modernidade levada ao extremo, onde se dá a vida pela posse de um produto reconhecido socialmente. A questão não é nem da posse do produto em si porque se assim o fosse, bastava tê-lo. É uma questão do direito à posse. Já que os sujeitos valorizados socialmente têm, estes jovens sentem que também podem ter. Desta forma, arriscam-se e saqueiam lojas para ter acesso a um produto que os distinguiria socialmente. Frustram-se porque a mágica não está no produto em si, este é um vazio. Assim, saqueiam, saqueiam e saqueiam e o sonho não se realiza. Vivemos um tempo de desejos infinitos que são projetos na compra deste ou daquele produto. Dizemos que “necessitamos muito daquilo” e ao comprar percebemos que a necessidade não é suprida, parece que necessitamos necessitar sempre. Nossa civilização precisa de uma transformação moral e esta parece estar a cargo de gerações que ainda estão por vir. A de nossos jovens parece estar a serviço de nos mostrar que algo está muito errado e o caminho que escolhemos não nos levará a lugar nenhum.
Voltando ao episódio, o clima foi de muita tensão, estranheza e reflexão. Resta-nos a coragem de ter algumas reflexões.
Estaria Londres tão preparada como imaginavam todos para os jogos Olímpicos do próximo ano? Será que apenas o Brasil é um país com problemas sociais graves como querem crer muitos de nós mesmos? Será que não estaria na hora de lermos um pouco menos a Veja e assistirmos um pouco menos à Globo e acreditarmos que vivemos em um país melhor do que querem estes veículos? Assim como afirmou Baudrillard, o Brasil é ainda um dos países onde há resquícios de esperança para o mundo. Ainda temos sinais de uma cultura mais pura, mais brasileira, menos contaminada por esta civilização moderna e cansada que trouxe à tona seus sintomas de violência neste ato de jovens ingleses esta semana.

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